Saindo da comunidade de Kanghág ag Goj, atravessamos o rio Uruguai em baixo de uma agradável chuvinha. Passamos rapidamente por Santa Catarina até chegarmos no estado do Paraná. Iracema nos guiou até a T.I Mangueirinha, mais precisamente no lugar antigamente chamado de Gleba B, ou “fazenda velha”, espaço que seu pai e seus tios ajudaram a retomar a meados dos anos 80 e que até então estava nas mãos da empresa madeireira Slavieiro Ltda.
Após 30 anos de ausência, Iracema pisou novamente na terra retomada e encontrou-se com seus parentes que ainda ficaram morando aí. Maria Helena Rodriguez é prima-irmã de Iracema, foi ela quem nos recebeu quando chegamos na Terra Indígena. Ela e seu filho nos hospedaram durante nossa estadia em Mangueirinha.
Durante os 4 dias que ficamos lá, ela, Iracema e seu sobrinho Dóka (ponta de flecha) nos fizeram percorrer o território recuperado por sua família, apontando também aos lugares onde estão enterrados os umbigos (as placentas) dos seus filhos Karindé e Katumé. Primeiramente conhecemos o primeiro lugar onde Alcindo Peni, o pai de Iracema se assentou e fez sua primeira roça rodeada então pela presença de várias araucárias que ele se empenhava a proteger.
Maria Helena e Iracema caminhando nas primeiras roças de Alcindo Peni, pai de Iracema
Memórias da chegada dos “Kaingang gauchos” em Mangueirinha
Araucária. T.I Mangueirinha
Os reencontros de Iracema com os parentes “gaúchos” que ficaram na terra recuperada foi forte em emoções, notadamente quando ela conversou com seu sobrinho Dóka que lhe contou seu projeto de etno-turismo como estratégia para proteger os pinheiros da Terra Indígena. Quando chegou na T.I, Dóka chegou nos braços da sua mãe, pois tinha 6 meses. Ele lembra porém, muito bem da sua infância do lado da sua tia e dos seus “avós”: Alcindo, Floriano e Eufrásio. Lembra de ter subido nos pinheiros com Alcindo, de ter aprendido das plantas e ervas do mato, dos cantos dos pássaros e do respeito pelas marcas (metades Kaingang) que Alcindo lhe ensinou.
Quem nos contou em detalhes a história da retomada da “fazenda velha” foi José Carlos, chamado de Zéca. Filho do antigo cacique “Paraguai” provavelmente assassinado por jagunços da região no início dos anos 80, ele lembrou também a importante atuação de Ângelo Kretã nas retomadas de terras Kaingang desde finais dos anos 70. Ângelo foi quem tinha viajado a Nonoai para apoiar a retomada de 78, ali conheceu Alcindo e outras lideranças que logo, ele chamou para retomar Mangueirinha. Também impulsionou as retomadas de Rio das Cobras (PR) e Xanxerê (SC). Zéca passou a tarde nos contando a história das retomadas de terras Kaingang da região sul do país, lamentando a falta de lideranças irredutíveis nas convicções que nem Ângelo e Alcindo.
Casa de Maria Helena. Retomada da “Fazenda Velha”. T.I Mangueirinha
Conversa com Zéca, filho do antigo cacique, “Paraguai”
Reencontros
No último dia da nossa estadia em Mangueirinha, tivemos a grande sorte de sermos guiados por Dóka no interior da reserva florestal de Mangueirinha onde ele pretende realizar seu projeto que visa a proteção de araucárias milenares que ali se encontram. Dóka conhece as plantas e suas propriedades com muita precisão. Nos mostrou remédios como “a dipirona dos Kaingang”, remédio de erva para ficarmos sempre jovem, remédios para engravidar assim como um monte de comida do mato que há um tempo atrás faziam parte integral do cardápio Kaingang…
Dóka mostrando os remédios da floresta
Iracema, de volta a Mangueirinha
Dóka nos levou também até uma araucária gigante, uma árvore sagrada que nos deixou sem voz. Ali, Iracema iniciou Dóka aos conhecimentos dos kujà (xamãs) realizando um ritual ao redor da araucária. Segundo ela, o ritual teve dois objetivos. O primeiro: iniciar Dóka e incentivá-lo a seguir o caminho das aprendizagens para se tornar um kujà e o segundo, proteger a araucária de uma possível destruição. Iracema pegou um remédio na mão e “benzeu” o Dóka que logo após, passou a atuar junto com ela para “benzer” a árvore utilizando cantos em Kaingang. Do lado da árvore, encontra-se uma pequena cascata onde tomamos um pouco de água para nos refrescar. Dóka nos explicou que o recorrido que a gente fez com ele está inserido como ideia para seu projeto de “etno e ecoturismo” a ser desenvolvido na Terra Indígena com o objetivo de proteger a floresta dos invasores e madeireiros que cortam e logo vendem os pinheiros.
Dóka bebendo água na cascata
Iracema e Dóka contemplando a araucária milenar
Resistência Kaingang!
Após uma trilha cansativa mas muito enriquecedora, voltamos à cidade onde passamos nossa última noite no Paraná em companhia do último filho de Maria Helena, que, para fortalecer o seu povo, decidiu estudar e tornar-se enfermeiro. Hoje, ele trabalha na cidade de Mangueirinha onde reside com sua companheira e seus dois filhos.
No dia seguinte, pegamos a estrada direção Nonoai… onde finalmente nos encontramos com o kujà mais conhecido dos Kaingang, Jorge Kagnãg Garcia…